sábado, 20 de fevereiro de 2010

We Are The World 25 for Haiti: um simulacro


Tinha 19 anos quando USA for Africa, We Are the World foi lançada. Uma comoção. O tema, sim, era e é por si só comovente. Mas a canção-hino deve ser reverenciada. Ali estavam reunidos 45 dos grandes nomes da música americana. Tive o meu próprio compacto. Ainda hoje, 25 anos depois, lembro de detalhes do clipe e da canção. Das entradas, dos timbres, do arranjo, dos graves, dos solos, dos duos, dos coros.
Hoje vi por inteiro a nova versão, difundida no Twitter como algo que arrancaria lágrimas. Longe disso. Muito, muito longe.
O drama do Haiti é demasiado cruel e tão comovente quanto a fome de África, que motivou a composição de Michael Jackson e Lionel Richie. É fato. É fato também que Haiti é um pedaço pequeno demais do mundo que corre. A dor coletiva pelo país já se esvaziou mundo afora. Além das iniciativas de entidades e organismos internacionais restará então a canção, quem sabe, como forma de mobilização para arrecadar fundos em prol das vítimas. Eu gostaria muitíssimo que fosse assim. Torço por isto.
Mas penso que não. Falta tudo na nova versão de We Are the World. Falta Michael, de verdade. Falta Ray Charles, Stevie Wonder, Bruce Springsteen, Al Jarreau, Bob Dylan, Cindi Lauper e muito mais gente com participação emblemática. Falta emoção e verdade. E talento. Muito talento.
O que vemos agora é um simulacro. E com uma produção previsível para as possibilidades e recursos tecnológicos contemporâneos. Richie e Quincy Jones - que também fez o primeiro arranjo - estão ainda à frente, sem muito o que fazer. Porque o que é genial, é único.
Ou então vira referência, apenas uma referência, para o novo. O final do clipe é o que salva: os rappers. Aí, finalmente, se apresenta uma nova cor, uma nova linguagem, um novo estilo. De repente, se fosse este o caminho eu o manteria na memória, assim como ao original, mesmo depois de tanto tempo.
Bom, aqui vai o novo clipe, a nova música. Confiram e discordem. Ou não.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Soweto, a Praça e o Poeta

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...

O trecho de um dos versos de O Navio Negreiro, de Castro Alves me comove. Na Praça mais famosa de Salvador, que leva seu nome chego no fim do domingo pra sessão de cinema. Com atraso porque é difícil estacionar em meio ao crack, desgraça urbana contemporânea.
Entro e já me deparo com Nelson Mandela, ou melhor, Mr. Morgan Freeman encarnando o então presidente sulafricano em expressões, gestos e sotaque africâner, ampliando sua equipe de segurança particular com homens brancos, começando a varrer o apartheid no próprio tapete e enfrentando seus pares por isto. 
O filme é Invictus, de Clint Eastwood e só isso já me faria sair de casa no final de domingo. Clint é, de longe, o maior cineasta da década. Mr. Freeman e o roteiro, inspirado em uma história real, só aumentam minha motivação.
Ao meu lado, um amigo que trabalhou em África e que ouviu aquela história contada bem de perto. Conheceu bem a Cidade do Cabo e Joanesburgo, andou por ruas que víamos a todo instante na tela, esteve em Robben Island Prision, na cela onde Mandela foi trancafiado por 27 anos, da largura dos braços abertos.
Foto: divulgação. veja.abril.com.br

Deste modo, abrindo os braços o capitão do time nacional de rugby da África do Sul, Francois Piennar (Matt Damon) mediu o lugar e meu amigo o fez da mesma forma quando lá esteve. É inevitável quando se depara com o cubículo onde mal cabia o colchão fino.
Ali Mandela suportou o frio que vinha através das grades sem proteção. A meresia lhe causou um problema na retina, seus olhos ficaram extremamente sensíveis à luz. 
E, ainda assim sobreviveu para levar à frente seus ideais e perdoar seus algozes. Por isso o que mais se ouve no filme é: "se o presidente aguenta, nós também podemos aguentar".
Cochichando, eu ia complementando as informações históricas de Invictus e confirmando a versão fidedígna da direção sensível e segura de Clint apoiada pelo talento do elenco.
A luta anti-apartheid obstinada de Nelson Mandela e seu desempenho na presidência da África do Sul não são mitificados quanto pareçam merecer. Houve controvérsias e estas são mostradas em Invictus naturalmente. Mas o recorte da história exposto no filme é suficientemente cru e, por isso, memorável.

Nelson Mandela e Francois Pienaar. Foto: Google Imagens

Todo ele preserva o contexto humanístico: o drama racial, a segregação, o abismo cultural e a miséria que advém do massacre aos negros, mesmo em maioria no país. Mandela é um líder humano, lúcido, sagaz e generoso demais para fomentar vingança. Prevalecem os seus princípios de igualdade e união em favor do país que ele vislumbra livre do apartheid.
Obviamente, tudo na linguagem cinematográfica ao melhor estilo Eastwood: vigor cenográfico e sutileza em contraponto, a história bem contada, clara e sem arestas ou dubiedade, elenco impecável e trilha sonora paralisante.
Damon e Mr. Freeman concorrem ao Oscar 2010 que, absurdamente, deixa Clint e Invictus fora das disputas principais, de direção e filme.
As ruas e favelas de Soweto, paupérrimas e vazias, com seus moradores agrupados e atentos a um evento que simboliza o esforço de Mandela e de Pienaar me remeteram ao espaço externo da sala do cinema.
Lá fora homens, mulheres, jovens e velhos viciados, os "crackeiros", em grande maioria afro-descendentes da cidade com maior população negra fora de África perambulavam em volta da estátua de Castro Alves, se jogando e andando a esmo na rua.  Desafiando motoristas para arrancar um troco dos transeuntes apreensivos diante de um atropelo iminente. Triste ironia.
Daqui a uma semana será Carnaval em Salvador e os "crackeiros" serão varridos para baixo do asfalto ou se congraçarão no vai-e-vem da dança na Praça Castro Alves, que estará repleta de turistas e soteropolitanos saltitantes.
E todos em uníssono endossarão o coro oficial da "festa mais democrática do planeta", onde até os "branquinhos são neguinhos". Tudo aos pés do poeta sensível à penúria escrava dos navios.
Não é preciso dizer que a desgraça do crack não é exclusiva de pobres e pretos. Já faz a cabeça e engorda as estatísticas de óbitos de jovens da classe média há algum tempo. Mas esta é outra história.
Por ora, o que se vê na praça é a praga do alento dos miseráveis. Dos que não escolhem, são escolhidos.
Mandela mostrou neste pequeno trecho da sua trajetória e do seu país que não se muda um cenário adverso sem liderança. E usou o esporte para levantar e unir em torno de um foco - um time nacional de rugby - uma multidão segregada, apartada. E fez valer a sua luta histórica. 
No caso de Salvador, na Soweto que se esconde atrás do Trio Elétrico, a política do Império Romano para com a multidão é levada ao pé da letra: panis et circenses. Quando o circo é o próprio pão. E, no outro lado desta arena, sequer há líderes a serem reverenciados. São todos atores do mesmo circo.