quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Soweto, a Praça e o Poeta

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...

O trecho de um dos versos de O Navio Negreiro, de Castro Alves me comove. Na Praça mais famosa de Salvador, que leva seu nome chego no fim do domingo pra sessão de cinema. Com atraso porque é difícil estacionar em meio ao crack, desgraça urbana contemporânea.
Entro e já me deparo com Nelson Mandela, ou melhor, Mr. Morgan Freeman encarnando o então presidente sulafricano em expressões, gestos e sotaque africâner, ampliando sua equipe de segurança particular com homens brancos, começando a varrer o apartheid no próprio tapete e enfrentando seus pares por isto. 
O filme é Invictus, de Clint Eastwood e só isso já me faria sair de casa no final de domingo. Clint é, de longe, o maior cineasta da década. Mr. Freeman e o roteiro, inspirado em uma história real, só aumentam minha motivação.
Ao meu lado, um amigo que trabalhou em África e que ouviu aquela história contada bem de perto. Conheceu bem a Cidade do Cabo e Joanesburgo, andou por ruas que víamos a todo instante na tela, esteve em Robben Island Prision, na cela onde Mandela foi trancafiado por 27 anos, da largura dos braços abertos.
Foto: divulgação. veja.abril.com.br

Deste modo, abrindo os braços o capitão do time nacional de rugby da África do Sul, Francois Piennar (Matt Damon) mediu o lugar e meu amigo o fez da mesma forma quando lá esteve. É inevitável quando se depara com o cubículo onde mal cabia o colchão fino.
Ali Mandela suportou o frio que vinha através das grades sem proteção. A meresia lhe causou um problema na retina, seus olhos ficaram extremamente sensíveis à luz. 
E, ainda assim sobreviveu para levar à frente seus ideais e perdoar seus algozes. Por isso o que mais se ouve no filme é: "se o presidente aguenta, nós também podemos aguentar".
Cochichando, eu ia complementando as informações históricas de Invictus e confirmando a versão fidedígna da direção sensível e segura de Clint apoiada pelo talento do elenco.
A luta anti-apartheid obstinada de Nelson Mandela e seu desempenho na presidência da África do Sul não são mitificados quanto pareçam merecer. Houve controvérsias e estas são mostradas em Invictus naturalmente. Mas o recorte da história exposto no filme é suficientemente cru e, por isso, memorável.

Nelson Mandela e Francois Pienaar. Foto: Google Imagens

Todo ele preserva o contexto humanístico: o drama racial, a segregação, o abismo cultural e a miséria que advém do massacre aos negros, mesmo em maioria no país. Mandela é um líder humano, lúcido, sagaz e generoso demais para fomentar vingança. Prevalecem os seus princípios de igualdade e união em favor do país que ele vislumbra livre do apartheid.
Obviamente, tudo na linguagem cinematográfica ao melhor estilo Eastwood: vigor cenográfico e sutileza em contraponto, a história bem contada, clara e sem arestas ou dubiedade, elenco impecável e trilha sonora paralisante.
Damon e Mr. Freeman concorrem ao Oscar 2010 que, absurdamente, deixa Clint e Invictus fora das disputas principais, de direção e filme.
As ruas e favelas de Soweto, paupérrimas e vazias, com seus moradores agrupados e atentos a um evento que simboliza o esforço de Mandela e de Pienaar me remeteram ao espaço externo da sala do cinema.
Lá fora homens, mulheres, jovens e velhos viciados, os "crackeiros", em grande maioria afro-descendentes da cidade com maior população negra fora de África perambulavam em volta da estátua de Castro Alves, se jogando e andando a esmo na rua.  Desafiando motoristas para arrancar um troco dos transeuntes apreensivos diante de um atropelo iminente. Triste ironia.
Daqui a uma semana será Carnaval em Salvador e os "crackeiros" serão varridos para baixo do asfalto ou se congraçarão no vai-e-vem da dança na Praça Castro Alves, que estará repleta de turistas e soteropolitanos saltitantes.
E todos em uníssono endossarão o coro oficial da "festa mais democrática do planeta", onde até os "branquinhos são neguinhos". Tudo aos pés do poeta sensível à penúria escrava dos navios.
Não é preciso dizer que a desgraça do crack não é exclusiva de pobres e pretos. Já faz a cabeça e engorda as estatísticas de óbitos de jovens da classe média há algum tempo. Mas esta é outra história.
Por ora, o que se vê na praça é a praga do alento dos miseráveis. Dos que não escolhem, são escolhidos.
Mandela mostrou neste pequeno trecho da sua trajetória e do seu país que não se muda um cenário adverso sem liderança. E usou o esporte para levantar e unir em torno de um foco - um time nacional de rugby - uma multidão segregada, apartada. E fez valer a sua luta histórica. 
No caso de Salvador, na Soweto que se esconde atrás do Trio Elétrico, a política do Império Romano para com a multidão é levada ao pé da letra: panis et circenses. Quando o circo é o próprio pão. E, no outro lado desta arena, sequer há líderes a serem reverenciados. São todos atores do mesmo circo.

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