terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Gil, cordas, partituras e lições

Um dos momentos mais especiais que vivi foi quando trabalhava na Escola de Música da UFBA e, em um dia em que precisei ficar além do horário, presenciei uma cena incrível.
Na sala dos professores estava o maestro e compositor suíço Ernst Widmer, um dos maiores conhecedores da música, do folclore e da poesia regional do Brasil, que inspiraram a sua obra fantástica desde que aqui se radicou, em 1956.


Ernst Widmer - Foto: Isabel Gouveia

Ele trabalhava em um arranjo para a Orquestra Sinfônica que, pela primeira vez tocaria com os Filhos de Gandhy, o mais famoso afoxé do Carnaval baiano. A música era Filhos de Gandhi, de Gilberto Gil:

"Iansã, Iemanjá, chama Xangô, Oxossi também
Manda descer pra ver Filhos de Gandhi..."

Com partituras espalhadas sobre uma enorme mesa, Widmer esperava alguém para concluir os arranjos.
Era Gil. Entrou, cumprimentou a Widmer e a mim, sentou e, humildemente, ouviu o que o maestro pretendia fazer com sua música.
Widmer lhe ofereceu uma folha pautada e pediu pra que ele escrevesse o arranjo original. Com mais humildade ainda ele respondeu: "eu não sei escrever partitura. Não conheço as notas, só cifras".
Widmer recolheu o papel e sem esboçar ar de surpresa ou censura, pediu: "então solfeje pra mim, marcando o ritmo".
Gil batia na mesa, olhando firmemente pra Widmer e cantarolava a música no "tá tá tá" enquanto o maestro transcrevia. Quando terminou, perguntou: "veja se é isso". E repetiu o trecho integralmente, apenas lendo a partitura. Gil ficou encantado e eu, paralisada. Pelos dois. Por aquele momento, único.
Sempre achei Gil um músico estupendo, um poeta ímpar e um arranjador espetacular. Penso, e repito sempre, que ele não é tão reverenciado como deveria. Pelo talento, pela obra, pela originalidade e reinvenção contínua da sua música.


Gil e Bem em BandaDois. Foto: Divulgação

Ouvindo e vendo BandaDois, seu novo CD/DVD, vejo o tamanho deste músico. E essa cena, quando ensina minuciosamente o arranjo de Expresso 2222 ao lado do filho, Bem, dispensa mais palavras.
Para Gilberto Gil, conhecer partitura sempre foi dispensável.

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